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Sexo PCD: pessoas com deficiência também transam

Mitos e tabus ainda minam a qualidade da vida sexual de pessoas com deficiência física. Falar sobre o assunto é o primeiro passo para quebrá-los 


Vontades, desejos e fetiches. Todo mundo tem e cada vez fica mais fácil de encontrar conteúdos sobre assuntos que nos dão tesão. Hmmm, que delícia, todos nós podemos evoluir na vida sexual, explorar nossas potências e transbordar de prazer! Sim, todo mundo mesmo, inclusive as pessoas com deficiência física. Se falar sobre construção da sexualidade de forma saudável a partir da perspectiva de um corpo normativo já é difícil, pautar a sexualidade de pessoas com deficiência física tem sido um desafio imenso. Isso porque mora no imaginário social a ideia errônea de que pessoas com deficiência são assexuais por serem frágeis, dependentes, e não capazes de desfrutar de uma vida sexual saudável. 


“Quando a gente olha a história da humanidade, desde os primórdios, lá na época dos caçadores-coletores, as pessoas com deficiência eram deixadas para trás para não prejudicar o resto do bando. Na lógica fordista da revolução industrial, ter uma deficiência significa não produzir. Alguém que não gera ROI (métrica usada na área de marketing que mostra o retorno sobre investimento). Mais um peso do que alívio. Isso fez com que as PCDs fossem rejeitadas pela própria família e vivessem às escondidas, tornando-se invisíveis para a sociedade”, diz Nicolas Levada, 29 anos, que tem deficiência física. Ele conta que mesmo tendo uma família que deu suporte emocional, o enorme desafio de construir a sexualidade de um homem com deficiência é um caminho muito solitário.


A médica ginecologista obstetra Carolina Mocarzel diz perceber que vivemos um momento de ruptura de preconceitos, e que as questões relacionadas à expressão sexual se inserem nesse momento de reconsideração sobre a forma como encaramos a vida. “Num aspecto geral, começamos a ver quebras de normas, como a obrigação de ter uma vida sexual performática para ser bem resolvida, ou que frequência sexual define a qualidade ou satisfação de uma relação. Esse movimento do prazer é uma grande mudança de paradigma na minha opinião, e estou vendo isso de forma gritante.”


No livro “Um apartamento em Urano”, Paul B. Preciado, filósofo e escritor feminista transgênero e referência em sexualidade e gênero, afirma que já é possível sentir o esgotamento das formas tradicionais de fazer política, mas também o surgimento de centenas de milhares de práticas de experimentação social, sexual, política, artística, corroborando com o que Carolina vem observando em consultório.


“Mas será que funciona?”


A médica explica que é preciso desmistificar o pensamento de que pessoas com deficiência física são assexuais, já que a libido, o desejo e a sexualidade dos cadeirantes não são alterados. Por outro lado, é importante entender que o ato sexual para essas pessoas têm certas particularidades. “A sensibilidade dos órgãos sexuais, por exemplo, é modificada, tanto nos homens quanto nas mulheres. Dificuldade de ereção, ejaculação ou baixa lubrificação vaginal são características que podem estar presentes na rotina dos usuários de cadeiras de rodas. De toda forma, o sexo e o prazer são perfeitamente possíveis — o que muda mesmo é a maneira de alcançar e sentir o orgasmo”, explica.


Isso não quer dizer que pessoas com deficiência física só possam se relacionar com outras pessoas com deficiência física, mas a troca de informações e uma boa comunicação são muito importantes, pois, além de evitarem constrangimentos e receios, garantem boas experiências para ambos. “Como qualquer pessoa que você for se relacionar, você vai debater sobre o que gosta, o que aceita, o que funciona ou não para o outro. A regra é a mesma. Pergunte e converse, sempre! Só o outro vai poder te dizer o que é melhor para ele. Inclusive, a dica para a pessoa com deficiência é também comunicar ou mostrar ao outro suas vontades, gostos e necessidades”, diz Maria Paula, fotógrafa e cadeirante.


Carolina explica que a ideia é entender o que pode limitar a relação e ter transparência com esses pontos, criando estratégias que sugerem conforto e segurança para a pessoa com deficiência. “Para uma mulher com uma paraplegia ou tetraplegia, por exemplo, é importante ver quais posições ela pode se adaptar melhor, as áreas que ela tem sensibilidade ao toque e prazer, e conversar com a parceria para saber como oferecer prazer também.”


Entender como ajudar mulheres que passam por colostomia ou sofrem lesão medular faz parte da atuação de Carolina. Ela explica que lembrar de esvaziar a bexiga antes da relação, pois elas são cateterizadas, avaliar a questão intestinal para poder relaxar mais durante o sexo, conversar sobre lubrificação e uso do lubrificante é sempre bacana, e mostrar que prazer não depende só de atos mecânicos, mas de gestos de carinho, e que isso às vezes fica de lado porque o constragimento e o medo de não agradar se tornam maiores.


 

Como rola a paquera


“Eu conheci a minha namorada por meio de aplicativo de namoro. Sempre tive que me esforçar muito mais para mostrar outros atributos meus que não o físico, principalmente fora do universo digital. Quando, numa festa, todo mundo começa na casa zero no sentido paquera, eu começo na casa menos 20”, conta Nicolas. "É muito comum ouvir das pessoas que sou herói por estar em locais de confraternização. Esse tipo de adjetivação é terrível por evidenciar uma certa pena das pessoas. E é óbvio que você não quer transar com quem sente pena, né?”, completa.


Maria Paula chama atenção para o uso de termos capacitistas como abordagem de paquera. “Imagina antes ou após a relação ouvir 'Você é um exemplo de superação', 'Você é tão linda que nem parece deficiente' ou já chegar perguntando 'Foi acidente ou é de nascença?' Vamos perder o tesão na hora!”. 


Fetiche: devotees


Já falamos por aqui sobre diversos tipos de fetiches, mas nunca falamos sobre os devotees: pessoas que têm tesão em indivíduos com deficiência física. Assim como está tudo bem gostar de ser amarrado, ter desejo em pés ou qualquer outra expressão da sexualidade, desejar pessoas que não seguem o padrão corporal também é uma das manifestações da excitação.


 

O problema é quando aparecem devotees que querem apenas realizar seus fetiches, fazendo uma busca pela deficiência, e não pela pessoa em si. Aí que mora o perigo, pois pessoas com deficiência não estão aqui para satisfazer o prazer do outro e serem descartadas. “Existe, inclusive, uma solidão da pessoa com deficiência por conta disso e outros embates como a falta de assumir uma relação com uma pessoa fora da corponormatividade. Por isso, muitos de nós se envolvem em relações abusivas durante a vida”, diz Maria Paula.


Maria insiste que é preciso naturalizar e humanizar essas relações, porque a sociedade ainda olha com estranhismo e receio, esquecendo de que pessoas com deficiência física são pessoas sensuais e dignas de relacionamentos, mas também conta que teve o privilégio de encontrar mais pessoas bacanas em suas relações sexuais e amorosas do que pessoas com medos ou preconceitos. 


 

Para saber mais


 

Yes, we fuck

Documentário que aborda a sexualidade de pessoas com diversidade funcional.

 


Sim, fodemos

Coletivo e bloco de carnaval que levanta a bandeira da sexualidade de PCDs.

 


Pleasure Able: sexual device manual for persons with disabilities

Um manual que inclui pesquisa, experiência clínica, informações sobre produtos e fornece a troca de experiência com pessoas que se debruçaram sobre como tornar mais prazerosa a vida de pessoas com deficiência.

 


Feliz ano velho, de Marcelo Rubens Paiva

Ao narrar o acidente que o deixou tetraplergico, o autor traz uma troca sincera e potente sobre sua nova forma de viver.

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