Por que parece que as pessoas não conseguem se relacionar hoje?
“Se tá solteira vamos ficar de casal... Tá, mas como?" A jornalista Julia Carneiro reflete as formas de conviver, amar e se apaixonar em tempos de aplicativos de paquera e foguinho na DM
Dia desses, me deparei com um meme que me fez rir de identificação e, em seguida, gerou aquela leve crise existencial – um meme que cumpriu a sua função com primor. Era algo do tipo: “Eu no meu último relacionamento: *Ignorando 48 bandeiras vermelhas por semana porque ~eu amo esta pessoa~. Eu solteira: Hmmm…Não curti o jeito que ele digita.” Pois é. Quando foi que todas as pessoas solteiras do Brasil ficaram tão criteriosas? E tão carentes? E até um pouco egocêntricas? O timing não pode ser mera coincidência.
“Qual foi a última vez que você ficou muito feliz a sós?”
Essa pergunta é do nosso jogo Connections Cards (e a dos próximos parágrafos também). Fui jogando – sozinha, ironicamente – e me guiando nos questionamentos sobre conexão com o outro para mergulhar no assunto desse texto.
“A pandemia trouxe manias, uma delas é a de solidão. ‘Minha vida está um saco, não tem nada acontecendo, mas, pelo menos, está tudo organizado.’” Este pensamento é da psicóloga Louise Madeira, publicado em uma matéria que escrevi para a revista Glamour, em junho de 2021, sobre as sequelas da pandemia nos relacionamentos amorosos. E, por um lado, isso é ótimo. O mundo caindo lá fora e aprendemos, na marra, novos jeitos de ser feliz a sós aqui dentro. Essa experiência pela qual todos passamos nos fez mais intelectuais de nós mesmos e, consequentemente, criteriosos sobre quem deixar entrar com sua bagunça. O check list ficou imenso.“Será que vale a pena desestruturar para colocar alguém incerto no meio? É possível que tenhamos reformulado o conceito de carência e descoberto que ela não mata”, acrescenta a terapeuta. Verdade, não mata. Mas volta e meia aperta, né? Não à toa, o conceito de que a felicidade a sós é finita é espalhado pelo mundo, da Bossa Nova à Hollywood.
E quando aperta é que vamos à busca. Aí, a lista de critérios se mostra exaustiva e insustentável da porta para fora – ou tela a dentro. Segundo relatório de pesquisa de usuários do aplicativo Bumble divulgado à imprensa, mais de meio bilhão de conversas foram iniciadas por mulheres em 2021 dentro do app. Olha esse número! A missão já começa no trabalho de curadoria. No episódio “Amor líquido: ninguém quer namorar”, do podcast Mamilos, compara-se o trabalho de buscar um date com a ansiedade de escolher um filme na Netflix. São tantas opções que você não consegue se decidir. Quando/se finalmente consegue dar o play, já nem está tão a fim de prestar atenção em nada – insira emoji bufando aqui. E tudo bem, porque se estiver chato, é só largar na metade e começar outra coisa.
“Qual foi o momento que você soube que estava a fim da pessoa? Descreva como foi.”
Pegando carona em mais uma carta das Connection Cards: digamos que você é brasileiro e não desistiu. Conseguiu passar da fase de julgar o comportamento online, marcar um encontro, o rolê de fato acontecer e, tcharã, o papo ser legal! Descobriram que foram no mesmo show daquela banda lá em 2017; ele tem um péssimo gosto cinematográfico e você achou engraçado – afinal, na presença, todo aquele check list pouco importa –, o senso de humor bateu. Poxa, que delícia. Tem coisa mais gostosa do que um date bom? Se conectar com a pessoa que está ali, descobrir o outro e a si mesmo por tabela, dar risada e – alerta gatilho! – se entregar ao presente. Chique. O que raios acontece depois que tudo desanda?
“Do que você tem medo? Falar sobre o assunto pode trazer mais consciência à questão, além de criar um momento de intimidade e troca entre vocês.”
Card tenso: Se entregar. Todo mundo quer se relacionar, mas será que todo mundo quer se entregar aqui e agora? Perder o controle? Se apaixonar? Correr o risco de sofrer? Correr o risco de ser feliz além da conta? Parafraseando Alain de Botton, em seu “Ensaios de amor”:
“Os amantes podem matar sua própria história de amor por nenhuma outra razão além de serem incapazes de tolerar a incerteza, o puro risco, que seu experimento de felicidade trouxe.” É mais fácil não levar o rolinho sério para frente num “vai que dá ruim” e curtir a paquera leve com outro match recente até que fique sério, e ciclo que segue. Às vezes, nem ia dar ruim. Podia dar bom, na verdade. Meio bilhão de conversas em apenas um app de namoro comprovam que as pessoas estão mais dispostas a tentar de novo um papinho líquido do que a se dedicar a uma conexão sólida.
O comportamento, esse “medo todo”, seria menos mau se não estivesse atrelado a uma justificativa para ser egoísta e ferir o outro no processo. Ex: “Não consigo lidar com isso. Vou sumir daqui. E tudo bem porque esse assunto me causa ansiedade e minha saúde mental tem que estar em primeiro lugar.” Normalizaram o ghosting com uma apropriação desajustada do discurso do autocuidado. Nem precisa dizer que o resultado é este mar de gente solteira traumatizada e tomando todas as precauções para que a situação não se repita. Gozando da impressão de ser livre quando na verdade se está presa aos temores passados e futuros.
“Qual foi o melhor conselho amoroso que você já recebeu?”
Para responder à última carta do Connection Cards de hoje, volto ao meme lá do primeiro parágrafo. É de fato assustador amar tanto que nem liga para sapato, filtro da foto, o tipo de drink que gosta, as letras que escolhe para dar risada online. É, sim, assustador estar tão apaixonado e nem ver red flags. Ao mesmo tempo, de que vale trabalhar o autoconhecimento tão profundamente senão para colocá-lo em prática? E qual melhor forma de se conhecer do que se conectando com outra pessoa?
Semana passada, em uma paquerinha online leve, mas pouco real (sim, estamos no mesmo barquinho), o seguinte diálogo se seguiu:
– Gosto da sua agilidade
– Timing é tudo
– Sem coragem, não é nada
Isto é, estamos conscientes. E, para isso, o clássico conselho de Guimarães Rosa, em seu Grande Sertão Veredas, prevalece: “O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem. O que Deus quer é ver a gente aprendendo a ser capaz de ficar alegre a mais, no meio da alegria, e inda mais alegre ainda no meio da tristeza! Só assim de repente, na horinha em que se quer, de propósito ― por coragem.” Vai. Pode dar bom.