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O amor é bom, solitário e absurdamente possível - mesmo que pareça o contrário

Em uma conversa com a psicanalista Ana Suy, a jornalista Giovana Romani investiga os porquês e os senões do mais nobre e mais universal dos sentimentos


Está em Sócrates, em Platão, em Nietzsche e até em Marx. Em Clarice, em Caetano, em Chico, claro, em Machado. Está em Cher, em Rita, no rock psicodélico, no pagode anos 90, e também em Miley Cyrus. Ele, pairando acima de todos, entre todos, dando frio na barriga e calor entre as pernas. Ele, único, tão fácil, tão difícil, tão simples, tão complexo, tão firme, tão escorregadio. Ele, o amor - o deus desses tempos, objeto de adoração, de busca, de fé.


Sim, esteja você namorando, solteiro, casado, enrolado, a verdade é que a ideia de amor romântico está aí, em muitos gestos seus, seja por sentimento, por negação ou apenas por ser - afinal, quer você queira ou não, crescemos parte de uma humanidade/sociedade que o tem como pilar. Por isso mesmo, parece uma grande balela geracional tratá-lo com desrespeito, generalizações, racionalidade exacerbada ou desleixo comedido. 


Quando foi que decepções viraram meme? Que pessoas únicas em suas características tornaram-se uma foto de perfil e uma breve descrição no cardápio de relacionamentos do app mais próximo? Que 'não quero namorar/me relacionar' virou um conceito fechado, não uma coisa que acontece? Que a paquera migrou para foguinhos na rede social? Que é preciso superar o fim em um dia, uma semana, um mês no máximo: afinal, amor próprio, né? Bem, encontramos pistas disso em um livro essencial, "A Rosa Mais Vermelha Desabrocha: o amor nos tempos do capitalismo tardio ou porque as pessoas se apaixonam tão raramente hoje em dia", da filósofa e quadrinista sueca Liv Stromquist.


Prazer, eu narcísico!


Antes de chegar aos pontos de Liv, um adendo sobre esta que vos escreve. Resisti bastante para não fazer deste um texto em primeira pessoa, mas acho que tenho lugar de fala aqui. Sou uma mulher de 37 anos, vivo para escrever e escrevo para viver. Amo muito o amor, sou solteira, fui casada duas vezes. A segunda, com filho, cachorro, casa de família, responsabilidades mil. A primeira, véu, grinalda, igreja, com meu primeiro amor arrebatador, após nove anos de namoro seguindo o script do apaixonamento. Portanto, há de se imaginar o susto que levo quando fico solteira e preciso me virar para entender o dialeto atual do amor: ghosting, breadcrumbing, manipulação, relacionamento aberto, ninguém quer nada, todo mundo quer tudo. 


Eu juro, juro mesmo, que lá em 2005 era mais fácil. Aí entra a autora sueca com sua teoria certeira, triste que só, sobre a evolução do amor. Segundo Liv, antes, apaixonar-se estava ligado a olhar o outro com um ser único, singular, pelo qual você nutria um sentimento transcendental. Agora, relacionar-se tornou-se um ver-se no espelho e buscar alguém parecido com… Você (pode entrar eu narcísico!). E então, meu bem, as pessoas não se envolvem, apenas se consomem - é genial a forma como Liv começa o livro citando Leonardo DiCaprio e todas as suas namoradas iguais, cujos términos amigáveis só não são mais sem sentimento que os começos protocolares.


Mulheres que ticam todas as linhas da planilha mental montada por Leo - e por tantos outros e outras, guardadas as devidas proporções e os devidos desejos humanos. Que viagem a racionalização do amor! Liv lembra do misticismo, do sobrenatural, da metafísica que paira sobre bons encontros. Apaixonar-se é sobre perder o controle, no fim das contas, algo difícil, bem difícil de se fazer com uma planilha.


O amor é bom 


Infelizmente, no livro, Liv Stromquist não aponta para um caminho possível. Estamos mesmo meio ferrados neste mar de tecnologia e de conquistas femininas (graças às deusas) que deixam os homens amendrotados e insensíveis - isso, claro, falando da lógica de um relacionamento heterossexual. Mas eu, ah, eu sou uma romântica incorrigível, que crê piamente ser possível amar a si mesmo e amar o outro, seja na configuração que fizer sentido para os dois (os três, os quatro, os terceiros…).


Por isso este texto é uma ode ao amor possível, aquele que não se explica, que chega e muda tudo. Uma tentativa de nos ajudar a percorrer o caminho até ele, não sem uma boa mão amiga: Ana Suy, psicanalista especialista no amor, autora do best seller "A gente mira no amor e acerta na solidão", em que mostra como amor e solidão estão intrinsecamente ligados - mesmo que tentemos muito, não há alma no mundo capaz de preencher nosso vazio existencial. 


"Amor é um misto de bancar a solidão com ter sorte, atravessado por um encanto com um outro que insiste", escreve Ana, numa das explicações mais bonitas e verdadeiras sobre o amor que lembro de ter visto. Ela fala ainda de idealização, do quanto buscamos notícias de nós mesmos no outro, do mistério que existe, dos desejos abertos, dos relacionamentos possíveis dentro de todo esse contexto. Uma luz que norteou a conversa a seguir - e pode nortear um pouco, quem sabe, sua vida também. 


Queria falar do amor por meio de uma perspectiva possível, não apenas dos relacionamentos líquidos, da dificuldade dos encontros… O que torna o amor possível nos dias de hoje?

Ana Suy: Gosto muito dessa perspectiva porque sai desse clichê, dessa preguiça que a gente tem de se relacionar com o outro nos nossos tempos, que cai nesse uso repetitivo das teorias de Bauman sobre o amor líquido. Tudo muito pessimista, apontando para o nada. Mas a gente segue dando nossos pulos, né? As pessoas seguem se encontrando, encontrando formas de se relacionar. Tendo a pensar que nos dias de hoje há muito mais uma possibilidade de reinvenção do amor, de reconstrução do amor, do que de encontro com o amor, como se o amor fosse uma coisa pronta. O que torna o amor possível é encontrar a parceria de trabalho na construção dele. Em alguma medida, a gente sabe disso, afinal falamos que "o que um que um não quer dois não fazem". Mas sabemos isso racionalmente. É muito difícil saber isso inconscientemente, com o corpo, com as nossas células. São poucas as pessoas que estão dispostas a entrar em contato com uma coisa em si que não sabe, alguma coisa em si que é suporte de uma falta. E é isso que permite a gente encontrar modos de encontrar com um outro - desde que esse outro tenha a mesma disposição. É uma grande coisa, uma raridade, mas é uma possibilidade de encontro amoroso ter essa sorte em alguma medida, porque não deixa de ser sorte também, de encontrar gente disposta a trabalhar.



Fico pensando que amor é também coragem e você fala isso muito bem. Afinal, amar a si mesmo é mais fácil que entregar-se ao abismo do outro, do que ele pode proporcionar de bom e ruim. Mas essa também é um ideia “polêmica” em tempos de autoamor, não?

Ana Suy: Não é tanto coragem por se entregar ao abismo do outro, mas, sobretudo, coragem para se encontrar com algo de um abismo próprio. O amor nos modifica, e aquilo que a gente pensava que era, no encontro com o outro, a gente não é mais bem aquilo. Essa ideia de autoamor, não vou entrar a fundo, mas da maneira como ela tem sido replicada, ela se aproxima de uma maneira perigosa dessa noção de egoísmo - que é um fechamento para o outro: "Então eu me amo, eu preciso de alguém que atenda os critérios de exigência que eu acho que mereço, menos que isso não aceito". Essa ideia pode ser interessante em alguma medida, porque nos salva de relacionamentos que podem ser de cara muito perigosos, muito ruins, mas ela nos coloca de uma maneira afastada do outro. É como se o outro estivesse ali para me servir, como se ele fosse alguém que tem que atender aos meus critérios. E, puxa vida, o amor é o avesso disso. Porque o amor nos modifica, nos coloca com o contrário, mostra o estranho em nós. Temos medo do amor porque ele nos mostra que somos diferentes de quem pensávamos ser.


Uma conhecida me contou que, no consultório da terapeuta, falando do namorado, disse: “Aí, aquilo, coisa de homem”. Ao que a terapeuta respondeu que não se podia ser assim tão simplista no ambiente analítico, já que estamos falando de pessoas e da subjetividade delas. A que passo essa não generalização dialoga com um amor possível hoje?

Ana Suy: Acredito que o amor nos singulariza, ele faz que a gente seja quem a gente é, ou pelo menos que a gente tente se aproximar de quem a gente é. Tem um poema da Liana Ferraz que diz assim: "Amar é ajudar o outro a ser". Quando falamos que é "coisa de homem ou de mulher", estamos nos afastando das coisas de amor, porque o amor é aquilo que nos modifica. Tem a ver com o estrangeiro em cada um de nós. Mas nem tudo é sobre o amor! Então cabem certas generalizações, sim. Afinal, o amor não é algo que tem certa materialidade e a gente pode isolar de todo o resto do mundo. Nem é um sentimento que está isolado de outro. Digo que amor é uma cesta básica de sentimentos  - a gente não consegue explicá-lo sem passar carinho, preocupação, ódio, vulnerabilidade. Amor é uma palavra que pode ser muito vazia de sentido e, por isso, tão perigosa, porque se acharmos que ela pode significar alguma coisa por si só, podemos nos colocar em péssimos lençois. 



Acha que, às vezes, por esse desejo ser tão latente, acabamos confundindo tudo com amor: desejo, posse, vontade… Qualquer coisa?

Ana Suy: Sim, a gente confunde o amor com um monte de coisas porque o amor é feito de um monte de coisas. 


É linda a forma como você diz que buscamos notícias de nós no outro. Porque, no fim das contas, é sobre a gente também, e não tem nada de errado nisso. Pode explicar um pouco dessa ideia?

Ana Suy: Sabemos, em certa medida, que somos estranhos a nós mesmos. Essa ideia que se tem propagada de autoconhecimento vem a partir daí: eu quero me conhecer, ou seja, eu me desconheço. O que acho que a psicanálise traz de novidade nessa noção é que, conhecer a si, não deixa de ser desconhecer também. E desconhecer em um nível de complexidade que nos leva a descobrir que jamais poderemos nos conhecer. Então não seria nem um autoconhecimento, não seria aprender a se conhecer, mas aprender a se desconhecer. É isso que a experiência analítica traz, mas eu acho que é disso também que se trata quando estamos em uma relação amorosa com o outro. Seja lá quem for esse outro: no sentido sexual, no sentido materno, no sentido filial, no sentido de uma amizade. É poder suportar que a gente não se conhece por completo, que o outro não se conhece por completo, que a gente não conhece o outro por completo. Enfim, suportar essas brechas que vão, em certa medida, paradoxalmente, nos trazer um conhecimento sobre nós. As pessoas que a gente ama também nos lembram de quem nós somos, ao mesmo tempo que nos modificam e participam da gente. A gente tem uma ideia de que a gente é alguma coisa, de quem a gente é alguma coisa pronta. É claro que há certos traços nossos inalienáveis, impossíveis de abrir mão, mas essa é a menor parte de nós. A maior pode se modificar de alguma maneira.


Para que um amor exista e resista é preciso despir-se de idealizações. Mas como fazê-lo?

Ana Suy: Penso que é importante desidealizar, mas a gente também idealiza a desidealização. Porque nós somos uma máquina de confeccionar ideais. Nós não temos como nos posicionar no mundo se não for a partir de um ideal. Se não conseguimos colocar objetivos na vida, desejos, sonhos, o mundo vira um caos. E essas coisas todas são frutos de uma idealização. Então não tem como "parar de criar expectativas", sem expectativa o mundo derrete, você não sabe mais quem é você e quem é o outro. É preciso criar expectativas, ter ideal, ter fantasia… A questão é o quanto a gente se apega a isso. Se a gente não topa poder perder expectativa, ideal, fantasia, e refazer isso, aí fica muito difícil sustentar um encontro com o outro e até mesmo com a gente mesmo. Precisamos abrir mão de um ideal em nome de outro.


Dividir a solidão com alguém, as subjetividades todas. Por que temos tanto medo dessa solidão? Não a física, mas a que nos faz escutar a nós mesmos, ao nosso vazio existencial?

Ana Suy: Não temos medo da solidão, temos medo do desamparo. E temos medo porque somos seres desamparados. Nós somos seres que dependemos de outros seres. Não é questão de querer ou não: impossível viver no mundo sozinho. Tanto no sentido material da coisa: não vou plantar, colher, cozinhar, lavar a louça, confeccionar a louça… E no sentido de que a gente depende do outro para existir também. Nós existimos, nós nos subjetivamos, nos constituímos psiquicamente em espelho. É o outro que dá notícias da gente. Por isso essa noção de automar é um grande fake, porque eu preciso do outro pra me amar. É assim que a gente aprende a se amar, quando a gente é criança primeiro: a gente precisa do outro para se fazer. Mais do que isso, a gente incorpora o outro dentro de nós. Essa noção de que somos um só, ela é imaginária porque somos povoado de uma galera dentro de nós. Parece uma coisa muito maluca, e é por isso que precisamos não saber tanto disso, precisamos poder acreditar em uma certa unidade nossa. 


Por que o amor vale a pena e sempre valerá?

Ana Suy: O amor vale a pena e sempre valerá - ainda que ache "sempre" uma palavra muito definitiva mas nesse caso vamos abrir uma exceção - porque a gente não tem outra opção. É Eros quem conduz a continuidade da vida, a união das pessoas, a gente poder se suportar, suportar o outro, e se suportar na relação com o outro. O amor é o material que temos para poder apostar na vida.

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