Como eu me descobri lésbica e tudo o que isso representou pra mim
Um relato verdadeiro de Elisa Artico, do time Lubs, sobre seu processo de identificação e autoconhecimento
Lembro de ouvir a palavra lésbica pela primeira vez enquanto eu ainda era uma criança. Não sei ao certo com qual idade: talvez 7 anos, talvez 10. Mas eu me recordo de, na infância, já ter clareza a respeito do significado dessa expressão na sua mais simples, mas não completa, forma. Lésbica: mulher que gosta de mulher. E pra mim, aquilo soava como algo completamente natural.
Talvez natural até demais, a julgar que eu vivia numa cidade pequena no interior do RS, e que eu tinha pouquíssimas referências de mulheres lésbicas e da própria comunidade LGBTQIA+ (que no fim dos anos 90 e início dos anos 2000 ainda se chamava GLS). Nessa época, as poucas referências que eu tinha da comunidade eram representadas de forma pejorativa ou associadas negativamente a doenças, perversão e pecado – algo "contra a natureza do homem".
E especialmente no caso das mulheres lésbicas, também se sobrepunha a essas associações uma camada de fetiche completamente machista. Ou seja: no melhor dos cenários, o que eu tinha acesso naquela época, ser sapatão ou ser gay era uma questão de ordem pessoal que deveria ser tratada apenas no âmbito privado. Assim: você até poderia ser lésbica ou ser gay, desde que fosse "dentro do armário", escondido.
Dentro daquele contexto, embora eu não estivesse em processo de descoberta, eu compreendia que ser homossexual era natural. Mas ao mesmo tempo em que entendia a naturalidade disso, eu também acreditava que aquilo não era uma possibilidade pra mim – uma crença totalmente influenciada pelo ambiente e pela cultura em que estava inserida, que me limitava a viver de uma determinada forma.
Então, me contentei em buscar relações heteronormativas e passei minha adolescência inteira e o início da fase adulta me relacionando com meninos e homens héteros. Não digo que era insuportável, mas também não satisfazia meus afetos e desejos completamente. De certa forma, era platônico: tanto o amor quanto o sexo. Mas eu só fui perceber isso quando entrei em processo de descoberta.
A descoberta da minha orientação foi tardia, já com vinte e poucos anos, e dentro de outro contexto social. Apesar de ter me relacionado só com homens até então, comecei a perceber que eram as mulheres que me despertavam atração e que roubavam meus olhares nas ruas. No começo, eu até confundia essa atração com admiração e jurava que esses olhares que eu trocava com desconhecidas eram pura sororidade. E talvez alguns deles realmente até fossem. Mas alguém podia ter avisado, né?
Aos poucos, comecei a vivenciar os meus desejos e descobertas. A princípio sem me preocupar em dar nome pra minha orientação, somente me permitindo ser quem eu queria ser, beijando quem eu quisesse beijar. Não digo que o que aconteceu em seguida simplesmente virou uma chave no meu cérebro e me iluminou, dizendo: "parabéns, agora você é lésbica". Porque o processo pelo qual eu passei até me assumir foi longo, não linear e impermanente.
Mas o que aconteceu foi importante para esse processo. Foi significativo. Foi o suficiente para eu começar a me perceber enquanto uma mulher lésbica e a enxergar que essa possbilidade existia pra mim. E foi algo tão simples e natural que uma criança entenderia. E a prova disso era de que a minha criança interior havia entendido desde sempre: eu era uma mulher que descobriu estar apaixonada por outra mulher.
Quando eu me vi nesse lugar, eu finalmente encontrei sentido em todas as minhas vivências até ali: todo desconforto das relações heteronormativas, toda pressão estética que eu havia sofrido na adolescência, todos os meus sentimentos de inadequação e não pertencimento. Tudo fazia sentido. Tudo tinha um lugar. Eu, agora, tinha um lugar. Mas infelizmente eu me apaixonei sozinha e precisei me afastar desse lugar que eu achava que tinha conquistado.
Daí até eu assumir pra mim mesma e para o mundo que sou sapatão, passei por muitos desafios, alguns relacionamentos lésbicos e muita autoanálise para investigar os meus desejos, mas também para me identificar enquanto mulher dentro desse papel. Eu entendi que ser lésbica é algo muito mais complexo do que gostar ou se relacionar com mulheres. Existem fortes padrões estruturais da sociedade que atravessam a experiência de ser lésbica, principalmente os que competem ao papel do gênero feminino.
A escritora Monique Wittig, nos anos 1970, chegou a mencionar que as lésbicas representariam um terceiro gênero por não estarem diretamente 'submetidas' a um ser masculino em suas relações pessoais; e também por, às vezes, apresentarem comportamentos ou aspectos considerados masculinos. Judith Butler e outras pesquisadoras dizem que o gênero, diferente do sexo, não é biológico e que é influenciado pela cultura. Ou seja: você pode ter nascido com o sexo biológico feminino, mas desempenhar um papel de gênero masculino ou não-binário.
A discussão é complexa e não há consenso sobre o que é ser lésbica e o que não é. Diferentes correntes dentro dos estudos feministas e de gênero apresentam discordância em vários pontos, é um debate aberto. Acredito que somente a compreensão de cada indivíduo sobre seus afetos e desejos é que pode delimitar sua orientação sexual. A meu ver, me assumir lésbica e me orgulhar disso faz parte de um processo individual de autoaceitação e de um processo social e político na busca por visibilidade e espaço. E é um processo contínuo que requer muita coragem, mas sobretudo, muito amor.